domingo, 14 de dezembro de 2008

Mais Críticas Atrasadas.

Estas são as últimas críticas atrasadas dos jornal Carteia. Os leitores vão reconhecê-las, pois já foram publicadas aqui no blogue há algum tempo atrás. De qualquer maneira, aqui estão elas:


Título: Vestida para Matar (Dressed to Kill)

Ano: 1980

Realização: Brian De Palma

Elenco: Michael Caine, Nancy Allen, Angie Dickinson, Keith Gordon e Dennis Franz

Género: Thriller, Crime, Mistério

País: E.U.A.

Produção: Samuel Z. Arkoff, Fred C. Caruso e George Litto

Argumento: Brian De Palma

Música: Pino Donaggio

Fotografia: Ralf D. Bode

Montagem: Gerald B. Greenberg

Sinopse/Crítica: Brian De Palma é um cineasta de homenagens. Todo o seu cinema está carregado de referências doutros cineastas ou dos seus próprios filmes. Isso é um ponto positivo a seu favor, pois torna os seus filmes interessantes e fascinantes. Uma dessas referências, e a maior de todas, é Alfred Hitchcock. Seja por movimentos, ângulos, pontos de vista ou perspectivas de câmara, seja pela montagem, o Mestre do Suspense está presente em todos os seus filmes. Referência que o próprio realizador assume, segundo o que alguma crítica americana considera como um uso abusivo das homenagens a Hitchcock, copiando até cenas inteiras e com isso não trazendo nada de novo aos seus filmes. Críticas injustas a um dos melhores e mais importantes filmmakers da sua geração, muito estudado nas escolas de cinema, pela sua forma especial e extremamente técnica de filmar.

Vestida para Matar é claramente uma das suas homenagens ao Mestre. Um thriller sensual, erótico quase, com um toque de film noir. Kate Miller (Angie Dickinson) é uma dona de casa amargurada e frustrada sexualmente. Uma frustração, que desabafada com o seu psiquiatra e amigo Dr. Robert Elliott (Michael Caine), a leva a cometer adultério com um desconhecido, para quebrar a rotina que a sufoca. No seu regresso a casa é brutalmente assassinada por uma misteriosa transexual loura, toda vestida de negro. Este crime hediondo é testemunhado por uma prostituta de luxo, Liz Blake (Nancy Allen), que passa a ser o novo alvo desta estranha assassina.

Mas as aparências iludem. O realizador dá extrema importância aos detalhes, provocando o espectador para uma redobrada atenção. Estes detalhes são-nos mostrados através da sua técnica fílmica, com por exemplo o enquadramento dividido ao meio, e da montagem. Outra das grandes marcas registadas do realizador e uma das suas homenagens a Hitchcock é a cor loura do cabelo das suas protagonistas.

A morte é uma presença habitual em De Palma. É mais uma das formas de desafio às percepções do público que o realizador propõe. A morte tem aqui a função de elo de ligação entre a personagem que morre e a personagem que testemunha a sua morte. Essa ligação emocional é introduzida através do zoom simultâneo dos olhos de ambas as personagens, como se a transmissão dum terrível tormento, neste caso, a morte duma reflectir-se-á na vida da outra.

Uma das situações interessantes neste filme é o facto de ter cuidado com o que se deseja, ou com o que se sonha, pois pode perigoso de alguma maneira. Passando a explicar: a personagem principal, Kate, morre por ter realizado as suas fantasias sexuais, por ter transgredido a sua rotina. Por outro lado, a prostituta Liz tem sexo a mais na sua rotina e quando se refugia numa vida mais pacata, após o susto, começa a ter sonhos em que aparece morta às mãos da assassina de Kate. Esta troca de papéis sociais tem uma força de ligação, a transexual assassina loira, o ponto de equilíbrio entre as duas mulheres. Esta gracinha irónica operada por De Palma mostra a sua visão peculiar sobre o sexo oposto.

Outro tema presente no filme é a transexualidade. Provavelmente a primeira vez que um cineasta abordou este assunto tabu para a sociedade conservadora estado-unidense num filme, embora duma forma subtil.

Vestida para Matar é uma interessante obra voyeurista que mostra exactamente porque que caminho trilha Brian De Palma, um cineasta por vezes não apreciado ou não entendido por alguns seus compatriotas críticos. Sem dúvida um realizador marcante no cinema estado-unidense de suspense.

Classificação: *** - Bom

Curiosidades sobre o filme:

- Brian De Palma fora casado com Nancy Allen, de 1979 a 1983.

- O realizador queria a musa de Ingmar Bergman, Liv Ullmann, para o papel de Kate Miller, mas ela declinou o convite.



Título: À Prova de Morte (Death Proof)

Ano: 2007

Realização: Quentin Tarantino

Elenco: Kurt Russell, Rose McGowan, Rosario Dawson, Michael Parks, Mary Elizabeth Winstead, Zoë Bell, Vanessa Ferlito, Jordan Ladd, Tracie Thoms, Quentin Tarantino e Sydney Tamiia Poitier

Género: Acção e Crime

País: E.U.A.

Produção: Elizabeth Avellán, Robert Rodriguez, Quentin Tarantino e Erica Steinberg

Argumento: Quentin Tarantino

Música: Toda escolhida por Quentin Tarantino

Fotografia: Quentin Tarantino

Montagem: Sally Menke

Sinopse/Crítica: À Prova de Morte é a sexta longa-metragem, em nome próprio, de Quentin Tarantino, um dos mais brilhantes realizadores estado-unidenses da sua geração. Um cinéfilo e amante da sétima arte como poucos, que transporta toda essa cultura cinematográfica para os seus filmes, criando imagens de marca, verdadeiros símbolos, características que o tornam num digno exemplo do cinema de autor. Entre as suas inesquecíveis obras, destacam-se Pulp Fiction (1994) e as duas partes de Kill Bill – A Vingança (2003-2004). Os diálogos são uma das suas maiores marcas cinematográficas. As temáticas giram sempre á volta de personagens fora-da-lei, onde a violência tem um papel importante. Reflexo duma sociedade violenta, num país dito desenvolvido e civilizado, proclamador da terra da liberdade. A linha narrativa do filme é bastante simples. Um duplo de cinema de filmes de série B assassina 5 raparigas com o seu carro à prova de morte, num violento acidente. Meses mais tarde repete a mesma brincadeira com outras raparigas. Mas desta vez, ele nem sabe no que se foi meter nem o que o espera.

Tarantino é daqueles realizadores que se parece com uma faca de dois gumes. Ou se ama ou se odeia (os seus filmes, entenda-se) e À Prova de Morte é um perfeito exemplo disso. Um filme que a crítica especializada venerou e ao mesmo tempo menosprezou. Mas afinal o que nos traz de novo esta obra do realizador estado-unidense? É exactamente o que queremos descobrir.

Primeiro que tudo À Prova de Morte é uma clara homenagem ao cinema de série B, cinema de baixo orçamento que se fazia nos anos 60 e 70, sem algum propósito artístico e que explorava temáticas sensacionalistas, algumas delas bastante chocantes ou mesmo tabu, como o sexo e a violência, de forma muito gráfica e explícita e que não passava no cinema mais comercial da altura. Este tipo de filmes passava nos antigos cinemas de bairro (ou cine-teatros), muitas vezes em sessões duplas contínuas. As salas que projectavam este tipo de filmes passaram a denominar-se Grindhouse, um vocábulo sem tradução para outras línguas, que passou a caracterizar este tipo de cinema. Os géneros eram os mais variados possíveis, desde western spaghetti, eróticos, horror, crime, mistério, filmes de canibais, de kung fu, de motoqueiros e de carros, zombies, mulheres na prisão, etc. Outra característica deste tipo de filmes era a qualidade da fita, que reflectia a qualidade do filme. Os riscos e a falta de fotogramas eram constantes, devido ao desgaste da fita provocado pelo extremo uso. Note-se que À Prova de Morte pertence à segunda parte da sessão dupla de cinema Grindhouse. A primeira parte foi assegurada pelo grande amigo de Tarantino, Robert Rodriguez (que o convidou para este projecto), com um filme de zombies chamado Planet Terror (2007).

Mas as homenagens não se ficam por aqui. As referências a filmes e séries de culto são uma constante. Exemplo disso é a conversa de Stuntman Mike com algumas raparigas no bar, sobre os filmes em que tinha participado como duplo, dos quais as raparigas desconheciam por absoluto. Outras referências são os seus próprios filmes. O carro amarelo e preto que aparece na segunda parte do filme é uma clara alusão ao fato usado por Uma Thurman em Kill Bil: Vol. 1 – A Vingança (2003). Outra das marcas autorais, que já foi mencionada acima, e talvez a mais importante de todas e a que mais sobressai nos seus filmes: os diálogos. A palavra em Tarantino é fundamental. Os diálogos são simples, banais e ao mesmo tempo sofisticados, cheios de repetições, com bastante calão e humor à mistura, originando uma espécie de eloquência própria e invulgar, conferindo um certo estilo cool aos personagens. Não podemos esquecer também uma pequena referência à literatura, pois o excerto do poema recitado por Stuntman Mike a Arlene chama-se Stopping by Woods on a Snowing Evening, da autoria de Robert Frost, poeta estado-unidense dos finais do século XIX, princípios do século XX.

Em termos técnicos, parece que Quentin Tarantino está cada vez melhor e isso nota-se na maneira como filma. Neste filme ele desempenha também a função de director de fotografia. Isto é importante referir, pois a qualidade da fotografia aumenta ao longo do filme. Temos, portanto, uma primeira parte a cores, muito má, cheia de falhas, com a falta de fotogramas e onde os cortes são mal executados. Tudo isto de forma propositada. A seguir passamos directamente para uma pequena parte monocromática, preto e branco, com excelente qualidade, onde Tarantino mostra as suas capacidades como director de fotografia. Nesta parte são introduzidas novas personagens, predominando um certo tom de mistério, dado pelo preto e branco. Passamos depois rapidamente para cor novamente, e esta cor já não é a mesma da primeira parte. Tem melhor qualidade e mais nitidez, apesar de continuar a haver falhas de continuidade, com a presença de alguns fotogramas a mais ou a menos. Uma palavra para a excelente montagem, servindo as ideias e os propósitos do realizador. O filme contém também excelentes sequências de acção. Tem umas das melhores perseguições de carros jamais filmadas e uma colisão frontal de cortar a respiração, extremamente violenta e visceral, onde os carros são personagens principais.

Quantos aos temas presentes no filme, eles não são nada novos em Tarantino. Cinema, sexo, mulheres, carros, violência, álcool, drogas e WCs. Cinema, porque quase todas as personagens trabalharam ou trabalham no mundo do cinema. O sexo está lá, não é explícito e a exploração da imagem feminina pela câmara é permanente como, por exemplo, na lap dance de Arlene a Stuntman Mike. Em relação ao álcool, drogas e WCs, nada a dizer. Estão quase sempre presentes nos seus filmes. Engraçado ver que o duplo que provoca a morte das raparigas na colisão frontal, não bebe um pingo de álcool. E claro, os carros, que são as personagens principais das sequências de acção e as “armas” geradoras da violência.

Mas então afinal o que traz de novo esta obra de Tarantino? Respondendo de forma curta e simples: nada. Mas por detrás deste «aparente vazio» está uma das suas obras mais interessantes. Isto porque mostra-nos Quentin Tarantino no seu melhor e igual a si próprio, logo, nada de novo. Por outro lado, a sua intervenção neste tipo de filmes série B, o seu peculiar estilo, torna o filme melhor do que ele realmente é, ou seja, o estilo de Tarantino eleva o nível da série B com À Prova de Morte, tornando-o, neste particular aspecto, inovador, fascinante e de culto.

Em jeito de conclusão e parafraseando George Clooney no anúncio publicitário da Nespresso, se aplicável ao cinema de Quentin Tarantino, seria algo assim: “Tarantino. Who else?”

Classificação: **** - Muito bom

Curiosidades sobre o filme:

Escolhido como um dos melhores filmes de 2007 pela prestigiada revista francesa de cinema Les Cahiers du Cinéma.



Legenda:

*- Mau

** - A ver

*** - Bom

**** - Muito bom

***** - A não perder




(Textos publicados nas edições de 20 de Novembro e de 04 de Dezembro de 2008 do jornal Carteia.)

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